“Alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva. Comida é tudo que se come com prazer, de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade” (Roberto DaMatta).
Saber o que o outro come nunca foi tão essencial para traçar personalidades e perfis sociais. Compartilhar o alimento ganhou um novo significado com as redes sociais. O que acontece não é a divisão da comida em si, mas sim a partilha da experiência e todo o contexto que a envolve. Basta estar munido de um celular ou smartphone com acesso à internet para compartilhar, detalhadamente, as mais emocionantes experiências gastronômicas. As redes sociais têm proporcionado uma ressignificação para a comida e suas práticas. Não mais com o sentido de suprir as necessidades nutricionais ou promover a comensalidade, na web, a alimentação tem impulsionado a diferenciação do indivíduo.
A refeição sempre esteve intimamente ligada ao social e o início dessa característica está relacionado à descoberta do fogo. Para Fernández-Armesto (2004), a partir do momento em que as chamas passaram a ser administráveis, a sua manutenção passou a ser feita por esforços compartilhados, o que proporcionou a união das pessoas em comunidades. O cozimento aperfeiçoou o poder do magnetismo social ao transformar o ato de comer em uma atividade praticada em local e momento determinados. Assim, além de produzir luz, calor e proteção contra inimigos e predadores, o fogo contribuiu com que os grupos se reunissem ao seu redor, em verdadeiras rodas sociais.
O início da individualização dos sabores
Saltando alguns milhares de anos, chegamos ao início da individualização da refeição. Em 1765, em Paris, um taverneiro chamado Boulanger criou um estabelecimento onde comercializava sopas restauradoras para recuperar as forças de pessoas doentes, inclusive as que tinham cometido excessos com a comida. Após a Revolução Francesa, os grandes cozinheiros deixaram de trabalhar exclusivamente para a aristocracia e passaram a investir em estabelecimentos comerciais que serviam refeições, chamando-os de restaurants, em referência ao caldo nutritivo de Boulanger. Estes locais deram início a um novo tempo e revolucionaram a gastronomia. O restaurante, que até então funcionava como restaurador, se transformou em atração turística e ponto comercial. Cada pessoa tinha seu prato, seu talher e utensílios para alimentar-se. Assim, a sociedade moderna foi rompendo com os costumes medievais, em que as pessoas se serviam com as mãos num prato coletivo.
Alguns séculos adiante, um novo impacto nos hábitos alimentares das famílias ocorreu a partir da década de 1980 com a explosão da política neoliberal, que pregava a desobstrução do comércio internacional e a entrada de capitais estrangeiros. No Brasil, o interesse pela chamada “cultura gourmet” está relacionado à abertura da economia no governo Collor (1990-1992), quando o mercado nacional conheceu ingredientes e iguarias que não se tinha acesso antes do impulso às importações. Além disso, o baixo valor do dólar nos últimos anos também favoreceu o consumo de ingredientes importados e fez com que a classe média adotasse um novo estilo de vida alimentar. Assim, também surgiu o indivíduo que se interessa por práticas culinárias artesanais e elaboradas, mas, diferente da socialização da refeição, é guiado pela individualização e personalização de sabores.
Comida nas redes sociais x status
Ao fazer login em alguma rede social, especialmente no Instagram, Pinterest e Facebook, quase que instantaneamente somos submersos por fotos de sushis e cupcakes. Mesmo quem não lembra o que jantou ontem, acaba sabendo o que e onde seu colega comeu durante a semana toda. Descendo um pouco mais a barra de rolagem, é possível conhecer os hábitos alimentares do cachorro do seu professor e ainda descobrir, pelo comentário da sua prima, que aquele restaurante tailandês não é tão bom quanto parece.
Aproveitando esta tendência, o grupo de comédia musical The Key of Awesome satiriza o usuário que publica fotos de comidas nas redes sociais, compulsivamente, em um vídeo chamado “Eat It Don’t Tweet” (Coma, não tuite). Na história narrada, todo o cenário criado com o posicionamento dos pratos, copos, talheres e até do acompanhante, revelam o desejo de autoafirmação do indivíduo, por meio da comida, em que nem o prazer ou a fome importam ao fazer o pedido em um restaurante — o que interessa é que o prato seja esteticamente agradável, exótico e/ou caro para ser exposto nas redes sociais.
De acordo com o Fernández-Armesto (2004), os códigos que envolvem o ato de comer estão em mudança constante, porque partem do princípio de que, quando popularizados, devem se renovar. Podemos citar, por exemplo, a introdução dos talheres nas refeições, com o objetivo de diferenciar as camadas sociais. Se no período pós-Revolução Francesa existisse Instagram, os perfis da aristocracia talvez estivessem repletos de fotos de garfos e facas individuais. E como as redes sociais ainda refletem as práticas da vida off-line, a foto da comida tem sido publicada não com o intuito de compartilhar ou tornar algo comum, mas pelo contrário, surge, muitas vezes, para estabelecer um status de privilégio ao desfrutar determinado alimento. Talvez seja esta a razão de “fotos de comida” estarem entre as mais odiadas por usuários do Facebook em um estudo realizado pelo jornal britânico Dailymail. Dos 1671 usuários pesquisados, 32% consideraram as fotos de comida as mais irritantes da rede.
Por outro lado, há quem tenha receio de dividir suas experiências gastronômicas, com medo de parecer arrogante ou mesmo chato. Mas não há motivo para se privar desse compartilhamento. Um dos segredos da gastronomia é saber utilizar as medidas corretas para os ingredientes e, nas redes, saber dosar também é fundamental na hora de utilizar o botão share.